A DEMOCRACIA NAS ASAS DA RAZÃO

I – O contrato social

Uma rápida investigação por entre a história do pensamento, e logo nos daremos conta de que a idade moderna chega trazendo como um dos seus principais panos de fundo o lema: “Liberté, égalité et fraternité” (Liberdade, igualdade e fraternidade). O enredo que embala a revolução francesa, já nos estertores do século XVIII, rapidamente ecoa por todo o Ocidente.

Com o horror visceral hobbesiano ao “homem à solta”, os tempos modernos se inauguram com a configuração do republicanismo e do moderno Estado democrático de direito. É justamente sobre a égide do liberalismo burguês e suas aspirações universais de igualdade que se inicia o projeto filosófico, moral e político da modernidade.

Um conceito importante que marca o pensamento político dos séculos XVII e XVIII é o do contrato social: através do pacto, o individuo abdica de sua liberdade, transferindo sua autonomia deliberativa para um poder transcendente, em favor de um soberano, e essa submissão é a condição de sua liberdade e de seus direitos enquanto cidadão. Eis então que o conceito de povo aparece na modernidade como uma produção do Estado.

Na teoria política moderna, o povo é representado como o produto do ato contratual constituído através da sociedade burguesa, como explicam todos os filósofos liberais modernos de Hobbes a Rawls. O contrato faz da população um corpo social único representável, passando por cima de todas as necessidades singulares de representação. Portanto, é o Estado que garante a medida de liberdade dos indivíduos, útil ao fundamento da máquina estatal.


II – Utilitarismo altruísta (egoísta)

Na primeira metade do século XIX três pensadores, Max Stirner, Pierre Proudhon e Karl Marx já anunciavam que a democracia seria a religião do rebanho do século XX; quarenta anos mais tarde Nietzsche, na descrição que faz da sociedade moderna, contesta o contratualismo e a democracia e nos apresenta o “animal de rebanho”. De acordo com Nietzsche, onde toda manifestação singular, diferenciada é vista como atentado e ameaça contra a coesão social, só o que se pode esperar é o empobrecimento cada vez maior da cultura fadado a mergulhar nessa mesmice massificada a que mais tarde se chamaria “indústria cultural”.

Ora, conceber que o Estado tenha origem num pacto social firmado entre indivíduos livres dispostos a negociar suas prerrogativas naturais só poderia ser fruto da imaginação de um povo de negociantes, a saber, os ingleses, cuja habilidade principal consiste em distorcer a realidade para vender seus produtos – no caso, as suas ideias.

Durante a segunda metade do século XVIII, os franceses, ainda em processo de laicização, passeavam por Londres e se admiravam com suas enormes instituições liberais.

A própria ideia de pensar a origem do Estado democrático em termos de utilidade (um conceito tipicamente moderno) partirá basicamente de dois modelos: o modelo jurídico e o modelo empirista inglês. Assim, de acordo com o “termômetro moral” de Jeremy Bentham, cada um deve contar por um. Isto é, a moral utilitarista condena seu agente a agira na contramão de seus apetites, no caso deles não coincidirem com o interesse da maioria.

Contudo, seria preciso que tivéssemos em nós uma soberania deliberativa frente aos apetites do corpo. Algo, portanto, que transcendesse a materialidade corporal e suas inclinações. Pois tudo o que ergue o indivíduo acima do “rebanho” e infunde temor ao próximo é doravante apelidado de mau; a mentalidade modesta, equânime, submissa, igualitária, a mediocridade dos desejos obtêm fama e honras morais.


III – Império: direitos universais do homem

O mundo não parece ser mais governado por sistemas políticos estatais; mas sim, por uma única estrutura de poder que não apresenta nenhuma analogia significativa com o Estado moderno de origem europeia. O “Well fire state” (Estado de bem-estar social) produzido na segunda revolução industrial da modernidade, período de transição do pós-guerra, anuncia os direitos universais do homem. “O novo comando imperial”, segundo os filósofos Negri e Hartd, “se exerce por meios de instituições politicas e aparatos jurídicos cujo objetivo é essencialmente a garantia da ordem global, isto é, de uma ‘paz estável e universal’ que permita o funcionamento normal da economia de mercado”.

Se antes, o conceito de democracia estava restringido às delimitações da soberania nacional, agora, as diversas instituições mundiais, como: a ONU (Organização das Nações Unidas), o FMI (Fundo Monetário Internacional), a OMC (Organização Mundial do Comércio) etc., passaram a se encarregar de assegurar a paz mundial e os direitos universais do homem.

E aqui, portanto, devemos deslocar o conceito de povo ao de multidão. A multidão, como explicam os filósofos Negri e Hardt, não poder ser compreendida nos termos do contratualidade. Grosso modo, a multidão desafia a representação porque é uma multiplicidade, indefinida. Já o povo é representado como unidade, corpo único. Um novo ponto significativo que deve, também, ser aprofundado é a relação entre movimentos sociais e modificações institucionais. O capital tomou de assalto à política representativa e, com isso, o desaparecimento progressivo dos universos autônomos de produção cultural. Todavia, o objetivo principal, hoje, não é descobrirmos o que somos, mas nos recusarmos a ser o que somos: um corpo social único representado. É dentro dos movimentos sociais que esses temas estão se tornando pertinentes; os partidos estão cada vez mais perdendo força e espaço, pelo contrário, são os movimentos que expõem os problemas e sugerem a solução.


Arte de Félix Dolah



Diante do cenário apresentado acima, a seguinte pergunta nos deve ser pertinente: as instituições universais, geradoras dos direitos humanos, articuladoras da paz e da liberdade, estão investindo de fato no fortalecimento do homem, no fortalecimento da vida intensa, ou seguem investindo nesse tipo de “subjetivação assujeitada” que nos autoriza a ser tiranos em nome da democracia?


- por Higor Gusmão

DO PARADOXO

DO PARADOXO
por Higor Gusmão

A estadia do homo sapiens sobre a Terra sempre exigiu dele a acomodação entre forças que normalmente têm tudo para serem tencionadas. Devemos, pois, reconhecer nosso enraizamento na physis e, ao mesmo tempo, nosso desenraizamento propriamente humano. Estamos simultaneamente dentro e fora da natureza (todo fenômeno natural obedece ao determinismo, todo fenômeno propriamente humano se defini por oposição à natureza): sujeito/objeto, alma/corpo, finalidade/causalidade. Tanto que a dualidade se reflete dos dois lados, em cada um dos dois termos. De um lado, qualidades físicas, corpos dotados de ações e paixões, corpos que trazem nos velhos muros de si as marcas da eterna luta entre os opostos; ao passo que, do outro lado, resultam os acordes impassíveis incorporais – puro efeito de superfície, que subsistem ou insistem no presente fazendo-o ressoar ao infinito em passado e futuro.

Dessa maneira, o homem prossegue sua busca por sanar suas pequenas palpitações narcísicas, experimentando em sua cabeça metafísica certa onipotência maníaca. A priori, estivemos a meio caminho entre a natureza e deus; a posteriori éramos filhos do próprio deus, feitos a sua imagem e semelhança.

Ora, o que esperar de um animal que sempre se achou a coroação por trás na natureza? O que esperar de um animal que expia sua existência através de todo tipo de sofrimento e pela morte? Heráclito considera até mesmo que o homem, em geral, é um ser irracional, o que não contradiz o fato de que a lei e a razão soberana se realizem em todo o seu ser. Ele nem sequer ocupa uma posição privilegiada na natureza, cuja manifestação suprema é o fogo, sobre a forma de um astro, por exemplo, mas não o homem limitado.

Todavia, o ser humano é complexo e traz em si, de modo bipolarizado, caracteres antagonistas: sapiens/demens (sábio e louco), faber/ludens (trabalhador e lúdico). O homem da racionalidade é também o da afetividade, do mito e do delírio. O homem do trabalho é também o homem do jogo. Eis que resulta daí uma incerteza pessoal, na qual, segundo Deleuze, "não é uma dúvida exterior ao que se passa, mas uma estrutura objetiva do próprio acontecimento, na medida em que sempre vai aos dois sentidos ao mesmo tempo e que esquarteja o sujeito segundo esta dupla direção".


Gilles Deleuze

Quem nunca se perguntou qual é o sentido da vida, o sentido desta ou daquela vida, ou melhor, o sentido da própria vida? O senso comum, enquanto um órgão e não mais uma direção, é a designação de que em todas as coisas há apenas um sentido, uma direção. Um princípio estrutural partindo de um suposto início em direção a um fim ou finalidade.

Entretanto, ser humano significa, em primeiro lugar, estar dentro e fora do mundo, dentro e fora de si mesmo. Ser humano pressupõe a perda da identidade a cada acontecimento exprimível. O sentido, como propunha os Estoicos, é no mínimo duplo. E aqui o paradoxo aparece ao mesmo tempo como instrumento de análise para a linguagem e como meio de síntese para os acontecimentos, uma vez que afirma essa dupla direção do sentido: dentro e fora, expansão e contração, envolvimento e desenvolvimento, devorar e ser devorado, introjetar e projetar. Na medida em que nos desdobramos, novas dobras surgem em nós. Na medida em que nos explicamos, novas implicações surgem em nós. O paradoxo é, em primeiro lugar, o que destrói o bom senso com sentido único, mas, em seguida, o que destróis o senso comum como designação de identidades fixas.

ATRAVESSANDO AS “MALHAS” DA GRAMÁTICA

Quem jamais tenha vivenciado tal acontecimento, ter de olhar e ao mesmo tempo ir além do olhar, dificilmente compreenderá que o sentido do mundo não está dado. É preciso inventá-lo constantemente.

“Nenhum dispositivo cerebral permite distinguir a alucinação da percepção, o sonho da vigília, o imaginário do real, o subjetivo do objetivo. A importância da fantasia e do imaginário no ser humano é inimaginável; dado que as vias de entrada e de saída do sistema neurocerebral, que colocam o organismo em conexão com o mundo exterior, representam apenas 2% do conjunto, enquanto 98% se referem ao funcionamento interno, constitui-se um mundo psíquico relativamente independente, em que fermentam necessidades, sonhos, desejos, ideias, imagens, fantasias, e este mundo infiltra-se em nossa visão ou concepção do mundo exterior.” – EDGAR MORIN, Os sete saberes necessários para a educação do futuro.

Podemos notar que dentre todos os seres vivos, apenas o ser humano é capaz de estabelecer signos arbitrários, regido por convenções sócias. Em cada linguagem, constituída por um sistema de signos, possui uma estruturação própria em termos de repertório, de regras de combinação e de uso. Isso quer dizer que cada linguagem organiza a realidade de modo diferente de outra, pois estabelece repertório e regras diferentes.

Um típico exemplo desse fenômeno semiótico é a linguagem esquimó, que tem seis nomes diferentes para designar vários estados de neve, em português temos apenas a palavra neve. Não se encontra alternativas previstas na língua portuguesa.
Contudo, não se trata de uma língua ter maior ou menor número de palavras para “recortar”, e sim o fato da linguagem eleger determinadas partes da realidade para nomear. Para citar Nietzsche: “originalidade é dar nome a algo que ainda não possui um. (...) Mas é, em geral, somente o nome que nos faz ver as coisas”.

A existência desse regime arbitrário de signos leva à percepção da realidade de forma diferente. O esquimó percebe os diferentes estados da neve, enquanto nós percebemos somente se há neve ou não. Pode-se afirmar que a estruturação da linguagem influência a percepção da realidade e o nível de generalização do pensamento. O meio semiótico, via privilegiada de efetuação humana, modifica a sensibilidade, cria paisagens, formas, figuras. Um imaginário como capa do mundo.

Por aí se vê que a consciência está longe de ser instrumento apto a refletir sobre o mundo e, tampouco, poderia se constituir como meio de autoconhecimento do sujeito. Enquanto instrumento da comunicação, a consciência é parcial e seletiva, não está apta a revelar nada além do que é necessário para fins de auxílio e proteção. Enfim, todos estes atributos: “eu”, “ser”, “nada” são, no limite, conceitos que constituem as “malhas” da gramática, que nos enreda em uma “necessidade metafísica”.  

Para poderem viver, os homens têm necessidade de estipular permanência, unidade, identidade, substância etc. Essa cadeia de significações acaba criando o mais do mesmo em nós durante todo o processo da vida. Mas isso, cristalizado pela linguagem, torna-se um preconceito hipostasiado em uma “faculdade”, a razão (eis que, semelhante, fazem a noção da ideia de Platão e o sujeito transcendental kantiano).

Autoria desconhecida. Você sabe? Nos informe

Entretanto, aquele que se põe em estado de poder captar os inefáveis balbucios do subconsciente, a ponto de poder dispensar a colaboração da razão discriminadora, abre caminhos à exploração para aquilo que não possui forma, deixando o tempo penetrar entre o sensório e o motor.

É preciso conceber a unidade do múltiplo, a multiplicidade do uno. Como no devir de Heráclito de Éfeso, onde toda efetividade é apenas vir a ser, nada permanece, não há formas ou fixações, apenas destruição e transformação.

Parte superior do formulárioParte inferior do formulárioA ideia de um mundo constituído de seres classificáveis por meio de substantivos comuns não provém da vivência autêntica, mas uma construção posterior alcançada por uma abstração operada pelo pensamento – clarões saídos do brandir das espadas dos elementos que se sobressaem na constante luta entre os contrários.

Ao passo que afirmamos o eterno suicida em potencial, latente em cada um de nós, de modo necessário, evitamos as armadilhas da gramática, adquirimos outra postura diante da linguagem. Deixando para trás duras paisagens de osso, destruindo a golpes de martelo os pilares que sustentam o pesado panteão da razão, vamos aprendendo a lidar com o eco de inumeráveis gritos de prazer e dor, sem refugiar-se diante dessa ciranda pastoral da metafísica.

- por Higor Gusmão

Vitia et virtú

Sem fazer uso exato dessas palavras, Sêneca (em Da tranquilidade da alma) nos fala o quão são inumeráveis as propriedades do vício, mas que o seu efeito é um só: o aborrecer-se consigo mesmo. A inércia não desejada alimenta a inveja, ambiciona a ruína de todos, porque não conseguiu atingir o seu próprio êxito. O entorpecimento obtido por vias químicas nos tolhe a capacidade de ação, atividade sem a qual perdemos o acesso com a superfície do acontecimento. Assim como a prática do ideal ascético - essa vontade de nada -, que torna o homem adoecido, docilizado, como diz Nietzsche: um animal de rebanho, miserabilizado ao ponto de fazer da própria vida tornada fraca um lenitivo para suas dores. Ah! A vida tornou-se demasiada genérica, visto que nos jogamos fora a cada instante, que assim que surge tempo para não fazermos nada nos entorpecemos. Seja com algo que nos faça dormir, aliás, adoramos nos desligar da realidade, ou com amor e ódio, que também são formas de se entorpecer. 

Fotografia de Matta Clark

Contudo, realidade e perfeição são palavras sinônimas em Spinoza. Para o filósofo, apenas a constituição daquilo que ele chama de ciclo virtuoso do pensamento pode tornar a vida potente o bastante a fim de escapar do regime vicioso de signos. Se mudarmos o pensamento, os valores e as relações com o mundo, inevitavelmente, se transformarão. Ao contrário do que pensava Aristóteles, o pensamento não é algo que se da de modo natural, mas ele é forçado, uma necessidade humana. Somos violentados a pensar. Portanto, ver diferente do que se vê, pensar diferente do que se pensa ou do que se pensou são ações que caracterizam as virtudes do pensar. Sem pensamento não há liberdade, valha-me Spinoza, sem liberdade só há vício e superstição.

Os homens e suas cabeças metafísicas

Uma rápida investigação pela história do pensamento humano e nos daremos conta de que a idade moderna chega trazendo como um dos seus principais panos de fundo a ideia de liberdade, o enredo que embala a revolução francesa, no final do século XVIII, “liberté, egalité et fraternité”, ecoa por todo o Ocidente. Com o horror visceral hobbesiano ao “homem à solta”, configura-se o republicanismo e o moderno Estado democrático de direitos, onde o individuo se submete à sociedade e essa submissão é a condição de sua liberdade. Mas, essa palavra foi tão deturpada, restituída, maculada (por dois mil anos de condescendência clerical, aristocrática e, depois, burguesa), que é melhor tomarmos outras linhas de pensamento e continuar. 

Como bem observou o filósofo Luis Fuganti, "quando queremos formar nossos cidadãos, investimos em assujeitamentos. Eis todo o cinismo da ideia moderna de liberdade". Pois, o homem, até sua última fibra, é inteiramente necessidade e absolutamente “não liberdade” – se por liberdade se entender a exigência extravagante de poder mudar a natureza segundo o próprio capricho, como uma roupa, pretensão que toda filosofia digna desse nome recusou até agora. Sófocles, famoso tragediógrafo grego (século V a.C.), ao relatar a luta do herói Édipo contra o império do destino, deixava claro como é irrisório o esforço humano ao tentar levar uma vida separada do todo. Em outras palavras, somos tão condicionados a agir de modo natural quanto a um leopardo. 

Entretanto, os homens e suas cabeças metafísicas, segundo James Frazer, influente antropólogo nos primeiros estágios dos estudos modernos de mitologia e religião comparada, confundiram a ordem de suas ideias com a ordem da natureza, e por isso imaginaram que o controle que tem, ou parecem ter, sobre seus pensamentos lhes permitia exercer um controle correspondente sobre as coisas; o homem projeta sobre o mundo um esquema explicativo que ele conhece a partir da sua própria causalidade, para dominar as forças da natureza a seu favor. 


Arte de Andreas Lie

Contudo, as instâncias modernas, geradoras de segurança e igualdade, realmente estão investindo na liberdade do homem, nas forças ativas do homem – únicas capazes de garantir tal pretensão, ou, apenas, estão investindo nessa “subjetivação assujeitada”, que nos autoriza a ser tiranos em nome da democracia?

Solidão ativa e seus encontros

de Higor Gusmão

Tudo aquilo que acreditamos ser se materializa no discurso. É através do diálogo que comunicamos aos outro os predicados que comportamos. E todo discurso, intrinsecamente, encontra suas origens sob o oceano do social, dessa maneira, aquilo que achamos ser é, na verdade, o que os outros ou a sociedade acham que somos. O “eu” em mim é o outro em mim, da mesma forma que o encontro com outro é, precisamente, encontro com o “eu” do outro. Nesse sentido o diálogo se apresenta terrível, ao passo que somos lançados á órbita dos acontecimentos incorporais, de forma surpreendente, nos ausentamos ante a presença da vida. Ocupados demais em formular e responder perguntas, típico exercício de distribuição e revezamento de poder. Acabamos esquecendo o que se passa conosco à medida que nos efetuamos, que nos encontramos com outros corpos pelo caminho, à medida que somos violentados pelo tempo a queimar nosso elã vital. Enquanto não aprendermos a ver no acontecimento de nós mesmos fonte de desejo e de realidade (motor do real) vamos continuar precisando de sínteses. 

Arte de Janusz Jurek

Apenas a solidão ativa, povoada de afetos, criações e encontros que não o outro, se apresenta como um horizonte imediato de efetuação. Experimente trocar a multidão de bocas se abrindo e fechando, sem ninguém pra dublar, pelo caminhar solitário. Por entre a vegetação úmida sinta a vida que lhe toca os poros, logo em seguida, deite-se ali mesmo onde os teus sentidos julgarem mais aprazível, tal ação nos permite o reencontro com a natureza em nós, razão de potência sem a qual não a criação de existência.

Amor-fati em Nietzsche: uma relação de apreço ao destino

por Higor Gusmão


Nietzsche, de modo geral, irá se agenciar com propostas filosóficas clássicas ao longo do tempo com o propósito de encontrar nelas suas molas propulsoras capazes de impeli-lo a uma filosofia que se proponha “para além do bem e do mal”. Mergulhando na esquizofrenia propriamente filosófica, o pensador alemão mostra-se profundamente atraído com relação ao pré-socratismo, uma vez que “Nietzsche”, segundo Deleuze, “se interessa pouco sobre o que se passa depois de Platão, estimando que seja necessariamente a sequencia de uma longa decadência” [1].

Todavia, é no postulado estoico acerca do destino que Nietzsche parece ter se debruçado a fim de desenvolver um dos seus mais belos conceitos, o “Amor-fati”, pouco explorado no autor em comparação as suas celebres formulações acerca do “eterno retorno”, do “ressentimento” e da “má consciência”; porém, eis a proposta nietzschiana de maior júbilo para a superação do homem – sim, meus amigos, “o homem é algo que deve ser superado” [2].

“Minha fórmula para a grandeza no homem é amor fati: não querer ter nada de diferente, nem para frente, nem para trás, por toda a eternidade... Não apenas suportar aquilo que é necessário, muito menos dissimulá-lo – todo o idealismo é falsidade diante daquilo que é necessário –, mas sim amá-lo... [3]

Amar a vida mesmo com todas as dores e pluralidade de sentido que ela traz em seu bojo constitui uma característica dos fortes, segundo Nietzsche, é o “dizem sim!” dionisíaco em oposição a constante rejeição promovida pelo cristianismo. Desde a cisão operada por Platão, essa concepção dicotômica totalmente errônea entre a “alma” e o “corpo”, o homem ocidental acostumou-se receber o acontecimento, sempre inédito, com a ficção chamada de “ideal” – “a ponte que levou à ‘cruz’” [4], logo a vida tornou-se algo que deva ser justificado e avaliado por meio do chicote silogístico da moral – e há muitas eras nossa civilização espia a vida através do “grande e único olho ciclópico de Sócrates” [5].


Arte de Alexandra Levasseur

Ao perscrutar cuidadosamente a trajetória filosófica do Ocidente, presa à rede da cultura alexandrina, Nietzsche depara-se com a expressão mais elevada do niilismo – marca registrada do que se chamou até então civilização e cultura – segundo os moldes da orientação platônica, e, prontamente, sai em defesa deste mundo:

“Desejo aprender cada vez mais a ver o belo na necessidade das coisas: é assim que serei sempre daqueles que tornam as coisas belas. Amor-fati (amor ao destino): seja assim, de agora em diante, o meu amor. Não pretendo fazer guerra ao que é feio. Não pretendo acusar, nem mesmo os acusadores. Desviarei o meu olhar, será essa, de agora em diante, a minha única negação! E, em uma palavra, portanto: não quero, a partir de hoje, ser outra coisa senão uma pessoa que diz Sim! [6].”

Pois “Dizer sim!” ao destino como ele a nós se apresenta e não nos perturbarmos com o que não está em nosso poder evitar, a saber, o fluxo inestancável de causalidades à qual, necessariamente, toda vida está acoplada é, muito além de uma reles obrigação da vida mortal, a própria condição de “eudaimonia”, palavra de origem grega que, grosso modo, pode ser traduzida por estado de bem estar, felicidade, alegria.

Com efeito, a palavra destino carrega em si mesma um leque bastante aberto de significações podendo ressoar de modo negativo ou positivo, dependendo da interpretação que dela se toma. Para o senso comum, o destino nada mais é do que um despretensioso quinhão, sina, sorte etc.; aquilo que a todo o momento deve ser recebido com o tão de pesar, posto que seja algo que escape aos domínios da moralidade humana. Em Nietzsche, diferentemente, a palavra vem repleta de um sentido positivo, o destino apresenta-se como aquilo que deve ser querido e amado acima de tudo, o próprio objeto do “Amor-fati”; de tal maneira nos estoicos, já que, para o pensamento estoico, “queira o homem ou não, todas as coisas acontecem necessariamente como elas acontecem” [7], e se o destino é uma necessidade da vida à qual os homens não se podem subtrair, não se deve odiá-lo e, sim, aprender a respeitá-lo.

Um belo exemplo desse amor nós podemos encontrar nos escritos do imperador Marco Aurélio, legítimo representante do pensamento estoico e um amante incondicional do destino que, ao se levantar, logo tratava de dizer para si:

“Ó mundo, tudo o que convém à tua perfeição, convém a mim! Nada me é prematuro ou tardio do que para ti é necessário. Tudo o que me trazem as tuas estações, é para mim fruto, ó Natureza! Tudo vem de ti. Tudo em ti reside. A ti tudo torna[8].”

Em outras palavras, aja sempre querendo o que acontece e como acontece. A vida e a morte, a saúde e a doença, o prazer e o sofrimento, a força e a fraqueza, quaisquer uns destes eventos naturais não dependem de nós, pelo contrário, nos são indiferentes. Tome-os como necessários, como nos orienta o filósofo Sêneca:

“Tu ficas indignado e te queixas! Não compreendes que todo o mal provém não do que te acontece, mas sim de tua indignação e de tuas reclamações? Do meu ponto de vista, não existe miséria para um homem a não ser a de achar que algo que faz parte da natureza das coisas não está correto. (...) Minha saúde não é boa; faz parte do meu destino. (...) Minhas rendas estão em baixa? Minha casa está rachando? Perdas, ferimentos, cansaços, inquietudes me assolam? São coisas que acontecem. Indo além, elas devem acontecer, pois não são obras do acaso, estavam determinadas. [9]

Bem, como o mostra Deleuze, tanto para Nietzsche como para os estoicos, “não há causas e efeitos entre os corpos: todos os corpos são causas, causas uns com relação aos outros, uns para os outros. A unidade das causas entre si se chama Destino, na extensão do presente cósmico” [10]. Desse modo, amar o destino não se trata de aceita-lo simplesmente como um fado ou fatalidade, porém deseja-lo e compreendê-lo como uma série de encadeamentos particularmente naturais no qual nós, enquanto partes dessa Todo, nada podemos contra a sua prescrição.

Nietzsche espera muitas coisas novas dessa concepção de “Amor-fati”: um novo modo de ver o mundo e o homem, uma nova organização da filosofia, uma determinação dos valores do futuro. Enquanto todos discutiam a respeito do modelo ideal de sociedade, modelo ideal de homem, Nietzsche voltou-se inteiramente para este mundo. Com afeição propôs uma reconciliação com a vida; preocupou-se não em saber o que era o homem, como deveria ser ou portar-se, porém, o seu questionamento tomou um sentido oposto, o que nós estamos fazendo do homem. E por meio de trovões e relâmpagos proferiu: “Eu sou aquele que traz a boa nova... E justamente por isso sou também um destino...” [11].


Referencias Bibliográficas:

HADOT, Pierre. O que é a filosofia antiga?. – São Paulo, SP: Edições Loyola, 2011.
DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido. – São Paulo, SP: Perspectiva, 2011.
MARCO AURÉLIO. Meditações. – São Paulo, SP: Martin Claret, 2012.
NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. – São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. – São Paulo, SP: Martin Claret, 2010.
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. – São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2011.
NIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo dos ídolos, ou, como se filosofa com o martelo. – Porto Alegre, RS: L&PM, 2015.
NIETZSCHE, Friedrich. Esse homo: de como a gente se torna o que a gente é. – Porto Alegre, RS: L&PM, 2012.
SÊNECA, Lúcio Anneo. Aprendendo a viver. – Porto Alegre, RS: L&PM, 2014.



[1] Lógica do sentido, Décima oitava série: das três imagens de filósofos, pág. 133.
[2] Assim falou Zaratustra, Prólogo, pág. 13.
[3] Ecce Homo, Por que eu sou tão inteligente, pág. 67-68.
[4] Crepúsculo dos ídolos, O que devo aos antigos, pág. 130.
[5] O nascimento da tragédia, § 14, pág. 84.
[6] A gaia ciência, Livro quarto, pág. 143.
[7] O que é a filosofia antiga?, pág. 192-193.
[8] Meditações, Livro quarto, XXIII, pág. 37.
[9] Aprendendo a viver, XCVI, pág. 97.
[10] Lógica do sentido, Segunda série de paradoxos: dos efeitos de superfície, pág. 5.
[11] Ecce homo, O crepúsculo dos ídolos, pág. 132. 


Eterno Retorno em Nietzsche: Sobre tornar-se leve

por Junior Bonfá


"E se um dia, ou uma noite, um demônio lhe aparecesse furtivamente em sua mais desolada solidão e dissesse: 'Esta vida, como você a está vivendo e já viveu, você terá de viver mais uma vez e por incontáveis vezes'. (...) Você não se prostraria e rangeria os dentes e amaldiçoaria o demônio que assim falou? Ou você já experimentou um instante imenso, no qual lhe responderia: “Você é um deus e jamais ouvi coisa tão divina!”. Se esse pensamento tomasse conta de você, tal como você é, ele o transformaria e o esmagaria talvez; a questão em tudo e em cada coisa, “Você quer isso mais uma vez e por incontáveis vezes?”, pesaria sobre os seus atos como o maior dos pesos!" – Nietzsche, A Gaia Ciência, §341
Nietzsche faz filosofia a golpes de martelo, e dialogar com ele traz o risco da destruição. Ruminar noções tão fortes como Eterno Retorno e Amor-fati faz tremer o solo frágil que sustenta toda a moral. Mas há aqueles que assim desejam; destruir os ídolos, as crenças estabelecidas, os acordos arraigados no meio social, e transvalorar os valores para afirmar a vida com a força ativa da própria criação. Por outro lado, a grande maioria de nós encontra recinto no conforto de conservar a vida como ela está.

A vida como ela está... Se vista pela ótica do Eterno Retorno, a vida como ela está, inclusive a que satisfaz enquanto acontecimento, poder-se-ia parecer dramática ao ponto de te esmagar. Perceberias que não há como eternamente assim viver. Perceberias, portanto, que a vida pode e deve ser mais potente, e assim arranjarias maneiras de fazê-la.


De Alexandra Levasseur

Algumas duras questões poder-se-iam ecoar em tua mente elucidando a tragédia: "Tentaste, porventura, tomar as rédeas da vida? Ao menos ousaste, acaso, ser artesão de si mesmo? Ou deixastes a mercê das causas exteriores?...".

Pode ser que à estas provocações consintas calar. Mas colocas-te a ponderar, na desmedida solidão atroz, onde o solo da moral vacila, onde os fluxos do desejo oscilam, e te perguntas com veemência: "Quão pesado esta sendo assim existir, e porque?". Para ajuizar que, tão somente assim dar-te-ias luz às forças que dançam em constante tencionamento no teu corpo, e permitirias, durante e depois de cartografar as multidões que habitam-te a bailar, escolher a música que traz harmonia à vazão dos desejos em linhas de fuga. Trata-se, antes de qualquer anseio, do cuidado de si - de travar um desafio ético-político com a própria existência.
"A vida tornou-se-me leve, a mais leve, quando exigiu de mim o mais pesado” – Nietzsche, Ecce homo
O que Nietzsche mostra, ao contrário do que se afirma por aqueles que não o compreendem, é precisamente o apelo a afirmação da vida. A necessidade de amar incessantemente a vida, e de produzi-la - na medida em que te cabe participar do processo - até contentar-te a eternidade. 

Perceberás que o que há de mais belo no existir, na imensidão de cada instante, é a capacidade de deixar fluir as diferenças que trazem maior beleza à vida. O grande desafio é: para que possas fazer da vida uma obra de arte, precisas antes destruir tudo aquilo que a torna uma cópia qualquer.


ESPINOZA - DA SOBERBA E A HUMILDADE

(Spinoza, Ética, p.146-148)
"A soberba consiste em fazer de si mesmo, por amor próprio, uma estimativa acima da justa.
Explicação. A soberba difere, portanto, da consideração, porque esta última está referida a um objeto exterior, enquanto a soberba está referida ao próprio homem que faz de si uma estimativa acima da justa. Além disso, assim como a consideração é um efeito ou uma propriedade do amor, a soberba o é do amor próprio, o qual, por isso, também pode definir-se como o amor de si próprio, ou seja, a satisfação consigo mesmo, à proporção que afeta o homem de tal maneira que ele faz de si mesmo uma estimativa acima da justa. Não há afeto oposto a este, pois ninguém, por ódio de si próprio, faz de si mesmo uma estimativa abaixo da justa.
Mais do que isso: ninguém faz de si mesmo uma estimativa abaixo da justa por imaginar que não pode fazer isto ou aquilo. Pois tudo o que um homem imagina não poder fazer, ele imagina-o necessariamente, e esta imaginação o dispõe de tal maneira que ele realmente não pode fazer o que imagina não poder. Com efeito, durante todo o tempo em que imagina não poder fazer isto ou aquilo, não é determinado a fazê-lo e, conseqüentemente, é-lhe impossível fazê-lo. Se, entretanto, tomamos em consideração aquilo que depende apenas da opinião, poderemos conceber que pode ocorrer que um homem faça de si mesmo uma estimativa abaixo da justa. Com efeito, pode ocorrer que alguém, ao considerar, com tristeza, a sua debilidade, imagine ser desprezado por todos, quando, na verdade, os outros o que menos pensam é em desprezá-lo. Além disso, um homem pode fazer de si mesmo uma estimativa abaixo da justa quando, no momento presente, nega, a seu respeito, algo, relativamente a um tempo futuro, do qual ele está inseguro, como, por exemplo, quando nega que possa conceber qualquer coisa com certeza ou que possa desejar ou fazer qualquer coisa que não seja má ou desonesta, etc.
Podemos, enfim, dizer que alguém faz de si mesmo uma estimativa abaixo da justa quando vemos que, por exagerado receio da vergonha, não ousa fazer o que seus semelhantes ousam. Podemos, portanto, opor à soberba este afeto que chamarei de rebaixamento. Com efeito, assim como da satisfação consigo mesmo provém a soberba, da humildade provém o rebaixamento, o qual, portanto, definimos como se segue.

Arte de Junior Bonfá

O rebaixamento consiste em fazer de si mesmo, por tristeza, uma estimativa abaixo da justa.
Explicação. É, entretanto, a humildade que costumamos, em geral, opor à soberba, mas é porque tomamos em consideração mais os efeitos do que a natureza desses afetos. Com efeito, costumamos chamar de soberbo aquele que se gloria em demasia, que, de si, não realça senão as virtudes e, dos outros, senão os defeitos; que, dentre todos, deseja ser o preferido; e que, finalmente, se apresenta com a gravidade e a aparência a que estão habituados os que se situam em uma posição muito superior à sua. Contrariamente, chamamos de humilde aquele que enrubesce facilmente; que, de si, não admite senão os defeitos e, dos outros, não realça senão as virtudes; que a todos dá a precedência; e que, finalmente, anda de cabeça baixa e não se preocupa com a aparência. Estes afetos, a saber, a humildade e o rebaixamento, são, aliás, raríssimos. Pois, a natureza humana, considerada em si mesma, luta contra eles tanto quanto pode. Assim, aqueles que se julgam os mais baixos e humildes de todos são, em geral, os mais ambiciosos e invejosos."

DA NATUREZA DO CORPO EM ESPINOZA: REPOUSO E MOVIMENTO

- por Junior Bonfá//

Tomemos como representação de corpo a noção Espinosista de corpo enquanto unidade, enquanto organismo que é corpo, alma e mente, sem dissociação ou predominância entre eles. Estas descrições que por muitos foram separadas, sobretudo em relações hierárquicas, aqui constituem juntas um único ser. Constituem um corpo que, por sua vez, é um modo do todo, da matéria, da natureza ou Deus, como quer Espinosa.

Espinoza nos traz a premissa de que os corpos não se distinguem entre si pela substancia, mas sim pelo movimento e pelo repouso, pela velocidade e pela lentidão. Uma vez que todos os corpos estão em movimento ou em repouso. Ora mais velozmente, ora mais lentamente.

O que impulsiona o mover do corpo? Outro corpo, responderia Espinoza: "Um corpo em movimento ou em repouso, deve ter sido determinado ao movimento ou ao repouso por um outro, o qual, por sua vez, foi também determinado ao movimento ou ao repouso por um outro, e este último, novamente, por um outro e, assim, sucessivamente, até o infinito". Acerca disto, Chauí nos esclarece que "...o corpo é relacional, é constituído de relações internas entre seus órgãos, de relações externas com outros corpos e de afecções, isto é, da capacidade de afetar outros corpos e ser por eles afetado sem se destruir, regenerando-se com eles e os regenerando. (...) Um corpo humano é tanto mais forte, mais potente e mais apto à conservação, à regeneração e à transformação, quanto mais ricas e complexas forem suas relações com outros corpos, isso é, quanto mais amplo e complexo for o sistema das afecções corporais".

Autoria desconhecida

Se, por um lado, um corpo que esta em movimento continuará a se mover até que seja por outro determinado ao repouso, e por outro, aquele que estiver em repouso continuará nesta condição até que seja determinado ao movimento por outro, a grande sacada que Espinoza nos deixa é tomar a consciência daquilo que esta impulsionando o nosso corpo. Saber que encontros estão nos constituindo, de tal forma que possamos distinguir os que aumentam ou diminuem nossa potencia, e seleciona-los.

TUDO FLUI, A VIDA É MOVIMENTO

- por Junior Bonfá//
Nada é resoluto no existir senão o fluxo de opostos. O ser é - mesmo que visto de um ponto isolado, na mais estrita delimitação temporal - uma eterna relação de contrários. Heráclito (535-475 a.C.) me atenta o rombo com o pensamento de Parmênides de que as coisas são, que o ser é único, imutável, imóvel; que as coisas não podem ser e não ser ao mesmo tempo. Me descontenta assim pensar a vida, pois ela é, por excelência, multiplicidade infinita. Heráclito bem nos traz que o ser é fluxo, é múltiplo, não somente pela via do exemplo que há uma multiplicidade das coisas, mas acima disto, por nossa própria existência ser constituída de oposições internas. Demócrito (460-370 a.C.) avança nesta discussão ao propor a vida enquanto composta por átomos, os quais são dotados naturalmente de movimento. A harmonia, por esta ordem, nasce da síntese dos contrários.

Arte de Janusz Jurek

A vida flui, é movimento, é mudança, é devir. Tudo muda e tornará a mudar num ciclo incessante. "Nunca nos banhamos duas vezes no mesmo rio", dirá Heráclito, pois não seremos os mesmos, bem como as águas. O depois sempre difere, rugoso ou liso . O desabrochar desviante à ordem de outrora se faz corriqueiro. Acaso, quisera disto fazer desalento? Dessa guerrilha se faz a harmonia. Neste exato momento estamos vivendo e morrendo.

A VIOLÊNCIA DO DIPLOMA

- por Junior Bonfá//
Para que serve um diploma senão para separar aqueles que detém uma suposta qualificação dos desprovidos deste saber? Saber qual garante, em hipótese, produção. Não custa lembrar que a noção de qualificação consolidou-se com o modelo taylorista-fordista de produção, onde a partir desta descrição de qualidades, dava-se o norteamento dos empregos e, por conseguinte, da remuneração. O saber-fazer entra, mais do que nunca, no jogo do mercado, uma vez que a produção em massa exige a mão de obra dos trabalhadores enquanto moeda de troca.
Ao longo do tempo, a escola - digo neste modelo que mais encontramos na sociedade ocidental, sobretudo o curso superior - passa desempenhar um papel central nesta divisão de classe, haja em vista que possibilita o diploma que vai sustentar a posição social do sujeito. Logo, a educação, por conseguinte, também vira mercado. Aliás, onde o capital entra que não vira? Todavia, há aqueles que não conseguem ou querem - por diversos motivos sociais e econômicos que este texto não se propõe tratar - frequentar este espaço e deter um diploma.
O sociólogo frances Pierre Bourdieu considerou que o que faz uma classe admitir sua inferioridade cultural não é a imposição por si, mas a internalização do que é imposto como “cultura”, e a escola é uma reprodutora desta relação. "O louvor à hierarquia, que parecia ser puramente escolar, contribui assim para a legitimação das hierarquias sociais, seja em se tratando dos títulos ou mesmo hierarquia dos estabelecimentos" (BOURDIEU, 2008).
Foucault, muito atento as relações de poder, nos mostrou que “ o diploma serve apenas para constituir uma espécie de valor mercantil do saber. Isto permite também que os não possuidores de diploma acreditem não ter direito de saber ou não são capazes de saber. Todas as pessoas que adquirem um diploma sabem que ele não lhes serve, não tem conteúdo, é vazio. Em contrapartida, os que não tem diploma dão-lhes um sentido pleno. O diploma foi feito precisamente para os que não tem.”

Fotografia de Pietra Araújo

Assim sendo, há uma violência que muitas vezes passa despercebida neste aspecto. Bourdieu nos traz que "quando não percebida, a violência leva o rótulo de violência simbólica, sendo ela uma imposição legitimada, havendo a assimilação de uma cultura dominante, de uma estrutura de relações de força, na qual a vítima não se percebe enquanto tal, já que aceita as imposições como naturais e inevitáveis... o poder simbólico é invisível, só podendo funcionar a partir da cumplicidade das pessoas que não querem saber que estão sob esse jugo ou mesmo exercendo-o.

Por um passeio na loucura

- por Junior Bonfá// 

Quisera eu antepor na vida um modelo único e dado. Bastaria tão somente existir, fosse a vida assim harmônica e métrica. A existência, porém, é aporia por excelência - e não há quem possa dizê-la não ser. 

Alguns pensadores nos convidam a trata-la por ângulos mais densos, partindo da noção monista de que tudo o que existe nada mais é do que a mesma matéria - uma substancia única a qual todos somos modos, como diria Espinoza. Tal noção permite olharmos o mundo a partir de um vínculo familiar, de pertencimento, e por esta ordem, nos consente reconciliar com a natureza, e ver o belo imanente em sua transformação constante. 

Mas como faze-lo? Como existir em harmonia plena com o meio, uma vez que estamos inseridos, sobretudo no ocidente, em uma sociedade extremamente ambiciosa e competitiva? Que visa, acima de tudo, o lucro pessoal? Que faz de si mesma moeda de troca? Que destrói tudo o que há, inclusive a natureza, em prol do poder e quantias monetárias? Esta é, em primazia, uma questão de prioridade existencial. Prática ética para com a própria existência. E quem prioriza, nesta ótica, fazer jus no jogo do capital, não consegue, nem de longe, existir em harmonia com o meio. Quem consegue? E como? Você pode me questionar. Para o deslumbre de muitos, e o frio assombro de outros, trago aqui, a partir de alguns pensadores, que os loucos, socialmente desajustados, desviantes da ordem, tem muito à nos ensinar em relação a sensibilidade da vida. Aliás, em uma sociedade extremamente normativa e de adequação, qualquer desvio se faz doença. Mas quem pode assim julgar o que é normal ou patológico, se não o próprio sujeito? Bem nos mostrou Canguilhem. 

"De vez em quando é alegre enlouquecer", diziam, corriqueiramente, os poetas gregos. Deleuze nos mostrou que a beleza dos seres humanos esta nos traços de loucura. Inclusive, no "O Anti-Édipo", ao falar sobre o passeio do Lenz (esquizofrênico) relata : "Ele achava que deveria ser uma sensação de infinita felicidade ser tocado assim pela vida primitiva de toda a espécie, ter sensibilidade para as rochas, os metais, para a água e as plantas, captar em si mesmo, como num sonho, toda criatura da natureza, da mesma maneira como as flores absorvem o ar com o crescer e o minguar da lua." Mesmo os dualistas, que sempre afirmaram a existência de dois mundos; o do corpo e o da alma, e sendo o ultimo o melhor, ainda assim, dando pouco valor a existência terrena, souberam apreciar a loucura em sua manifestação imamente no mundo material. Aristóteles alertara não haver grandes gênios sem uma mistura de loucura. Platão também, em pensamento semelhante, ao fazer referencia aos poetas e suas musas inspiradoras, afirmou: "Em vão se dirige às portas das musas quem tem o domínio de si". 
Eu poderia continuar citando enunciados desses grandes pensadores da chapa branca da filosofia, tão somente para evidenciar que nem sempre, e nem por todos, a loucura foi estigmatizada em sua totalidade pelo viés negativo.

Fotografia de Elena Petra Costa

 Deve-se ficar claro, faço questão, que este texto não se propõe à um movimento pró-loucura, mas trazer a tona - para muitos em forma de ferida narcísica -, que nossa sociedade, produto e produtora do capitalismo, esta se distanciando em grande escala da busca pela harmonia da existência. 

Queria eu viver num meio, que em contraposição a lógica do mercado cruel, globalizado, afirmasse a existência através do que os Estoicos nos ensinaram, do que Nietzsche nos mostrou sobre o Eterno-Retorno e o Amor-Fati, da Ética de Espinoza. Conseguem imaginar? Deixo aqui o apelo por uma existência voltada às questões do homem, do socius, do ser, e não do capital. Por passeios como o do Lenz. Pela contemplação da natureza; do belo; DA VIDA