Por Mateus Reis
"Oh, senhor cidadão, eu quero saber, eu quero saber com quantos quilos de medo, com quantos quilos de medo se faz uma tradição?" (Senhor Cidadão, Tom Zé)
A
cada vez que circulo pela cidade e me esbarro com um estudante de Direito, vejo
que a espessura de seus livros cresceu duas vezes mais. Com dó de seus braços
estirados aos limites, os quais revelam o cansaço da tarefa de carregar os
avolumados blocos de papel, reparo que o aumento do número de páginas me expõe,
em sua mais nítida e assustadora concretude, aos investimentos na direção de
judicializar a vida. Eu desejo chamar a atenção, a sua, minha, a de qualquer
um, para o fato de que uma vida extrapola as palavras, os papéis, os juízos, os
juízes – e, acredite – a nós mesmos.
Aqueles
que apreendem a tentativa de regulamentar uma vida jamais conseguirão esgotá-la
de seus impreteríveis escapes. O escape é por natureza aquilo que é impossível
de se conter. Quem viu algo escapar, só pôde o ver já escapando, em ato. Como
num flagrante. Ou então, retrospectivamente. Não pôde prevê-lo, nem contê-lo,
pois ele só ganha existência escapulindo. Uma vida, como um plano de pura
imanência, para além do bem e do mal, em seus escapes inantecipáveis.
Ao
circular pela cidade, em contato com a vida pública em sua plena operação, na
dependência do contato com pessoas que não escolhemos, estamos lançados aos
imprevistos. Na rua, pode ser que tropecemos, que esbarremos, que sejamos
interpelados por alguém. Contudo, o que nos acontece? Como nos sentimos ao
exercer a vida pública?
As
palavras deste texto berçam na aventura que é morar na cidade do Rio de
Janeiro. E nascem, precisamente, daquilo que pude sentir ao viver na
“Guanabara”. O medo é certamente um dos sentimentos que experimentei como
transeunte, e como acanhado frequentador dos espaços cariocas. Suponho que você
também já pôde sentir o sabor desse "medo urbano", que já provou de
seu gosto amargo. Talvez seja justamente aí, na malha fina do paladar, do
sentir, que encontramos um território significativo a ser explorado. Sentir e
pôr em questão o sabor, indagar-se sobre os procedimentos e mecanismos de
produção afetiva, pôr em cheque a dimensão de "pré-coisa" da coisa.
Equivocar o sentido acostumado do sentimento ao ponto de mergulhar os pés no
Rio para sair desse ciclo vicioso. Ao ponto de sentir alguma coisa doce lhe
penetrar, e pôr-se sensível às intensidades que cruzam para além e aquém do
amargor do medo.
Arte de Aaron Siskind
Tal
incorporação do plano intensivo de forças na cartografia da subjetividade
desafia-nos a entrever, como que por uma vertigem visionária, o compromisso
ético-estético-político com a vida. Precisamos lutar por microfissuras e pela
criação de espaços abertos às singularidades. Lutar com intuito de dar a vida uma bossa
nova: para além do pau, da pedra e do que parece ser o fim do caminho.