Aion contra Cronos: por um tempo intensivo de criação


Aqui estamos nós, agora, preenchendo o presente como esta tela, esta cadeira, este chão. . . Cá estamos, como as moscas, interpostos num arranjo que compõe o todo que nos circunda, que nos mede e limita nossas ações. Mas vejamos, os corpos não se misturam com perfeição ou sequer harmonia - estamos lançados no ineditismo dos encontros -, fissuras não cessam de se abrir por entre o todo. É que apaixonados que somos, atravessados que fomos pelo que foi, ávidos que somos pelo que virá, não nos cabemos assim por muito tempo em medidas. Demasiados que somos, escapamos, e escapando, num instante, trazemos conosco a ferida que nos impele a atuar contra as coisas tal como elas estão. Assim, pois, de um lado Deus, o todo, a soma dos corpos no presente, e do outro o Ator, um corpo, um presente relativo que muda de natureza quando em disputa com o todo. Eis, numa palavra, a noção estoica de Aion contra Cronos, qual Deleuze remonta - no vigésimo terceiro paradoxo da Lógica do Sentido  -para pensar o acontecimento em sua temporalidade paradoxal.

Atemo-nos um pouco mais nesta distinção para entendermos a cisão. Deus (Cronos) vive como presente o que é passado e futuro, como um presente corporal que é o tempo das misturas. O Ator (Aion), contrariamente, vive como instante que divide o presente ao infinito em passado e futuro, esticando sobre ele uma linha que separa as coisas das proposições. Mais precisamente, Cronos é a efetuação física dos corpos, enquanto Aion é um acontecimento puro, impessoal e pré-individual, qual espera a criação da linguagem semiótica. O Aion libera o conteúdo corporal do presente, fazendo-o emergir num tempo de criação, como singularidades que são um plano de forças virtuais que se atualizam. Aion é o tempo da imprevisibilidade que cria o acontecimento.

O presente se contrai em profundidade para absorver os presentes relativos. Mas no interior da profundidade há um devir-louco que se furta ao presente e ameaça de dentro a ordem dos corpos. Com o Aion, o devir-louco da profundidade sobe a superfície num movimento em que o corte profundo aparece como fenda na superfície. Trata-se de uma espécie de mistura venenosa que subverte Deus, que o confunde e altera. A saúde deve ser buscada na outra direção, na de Aion contra Cronos. É preciso sermos abundantes de vida, termos a grande saúde que Nietzsche fala, para assim conseguirmos empunhar o machado contra as coisas com valores arraigados. Pois, também em Canguilhem, a saúde diz respeito a criação, porque o doente não o é por falta de norma, mas antes por incapacidade de ser normativo.


Arte de Alexandra Levasseur



Aion, enquanto atua contra o estado de coisas, pode correr infinitamente para o futuro ou passado, mas somente enquanto dura o instante. Disso se segue que a questão é: Como suscitar instantes imensos? Há quem faça “formulas éticas” a partir da moral estóica e da tragédia grega de modo geral. Seneca diz:  Um dia como uma vida! A manhã como representação da nossa infância e adolescência, a tarde como o período da maturidade à velhice, e a noite, final do dia, como o momento em que se olha para trás e com alegria se entrega ao sono (morte) pelo dia bem vivido. Já Nietzsche, por sua vez, diz: Eterno retorno e Amor-fati! Para que a questão em tudo e em cada coisa: “Você quer isso mais uma vez e por incontáveis vezes?”, pese sobre nossos atos como o maior dos pesos.

Como diz Zaratustra quando em convalescência pós transvaloração: “A vida tornou-se-me leve, a mais leve, quando exigiu de mim o mais pesado”. Não há criação sem sofrimento. Precisamos nos destruir, alegrarmos com isso que força a afirmação de outros valores. A fissura na superfície do acontecimento, quando incorporada, racha a forma do Eu. Todavia, há aí o perigo da loucura, mas por isso temos a arte, para podermos nos rachar sem medo. Deleuze não cansou de dizer que a arte é o que resiste ao presente porque serve de alimento a sujeitos larvares que virão a ser o povo que falta. Há movimentos que só sujeitos embrionários conseguem suportar. É o sentido que faz existir o que exprime. Pois nos inventemos, ainda que para depois, como o poeta pantaneiro, confessar: “Noventa por cento do que escrevo é invenção; só dez por cento que é mentira”.

O que estamos esperando? Matemos Deus e tomemos o seu lugar, pelo menos enquanto durar o instante da criação. . .