O sujeito em Deleuze e Guattari

por Clécio Branco, 
originalmente para o Blog Euphilosofia


     A questão do sujeito se encontra presa ao determinismo clássico que separou o homem e natureza, sociedade e natureza, sujeito e objeto. A questão passa pela dificuldade de se pensar um terceiro termo que una as duas coisas num só sentido. Os conceitos vêm balizados nessa separação. Quando se discute o que é psíquico e o que é orgânico confirma-se essa dependência. A velha dicotomia corpo e alma, superada no paralelismo psicofísico de Espinosa, ainda não foi bem superada na extensão homem e natureza. Os especialistas se distanciam quando tomam seus objetos em separado. Na esquizofrenia, por exemplo, médicos de um lado para medicarem a natureza, psicólogos do outro para perscrutarem o psíquico, natureza e cultura, portanto. Quando descrevemos o homem e as coisas por essa dualidade, não parece ser o caso de um equivoco simples, mas o de uma impossibilidade de se articular um terceiro termo que possa abranger as duas coisas. Não conhecemos o termo que faça a conexão entre os dois. O que pode indicar que todo o nosso conhecimento de natureza e cultura se baseia na ignorância, ou na incapacidade de uma junção lógica. Há um risco de que essa ignorância possa ter nos lançado no fosso do senso comum. 

  Quando pensamos que o edifício de nossas certezas se baseia num Eu que pensa essas duas realidades separadas sem um nexo que as una, nos perguntamos sobre a natureza desse sujeito Eu. Se ao se constitui um Eu, ele já se encontra no mundo dividido em categorias (natureza e cultura). Vemos e pensamos por essa estreita dicotomia. Mas, como vimos anteriormente, sujeito e objeto se interiorizam num sistema que não se totaliza, mas se inter-relacionam perfazendo um sujeito afetado e cambiante. Deleuze/Guattari seguem o maquinismo que une natureza e cultura no ser univoco da universal produção primária. Há lugar para o sujeito em Deleuze/Guattari? Dizemos que sim. É o mesmo sujeito que se encontra no condensado texto de Deleuze, “Imanência: uma vida...”, ali, o sujeito aparece na forma como Dickens apresentou para o autor, na forma de um moribundo. Toma-se um moribundo como personagem conceitual. É na pessoa do moribundo, quando a vida joga com a morte, momento crítico em que o sujeito enquanto identidade no mundo cede lugar à própria vida.

  Quando a vida subsiste em um indivíduo que é pura singularidade. O que acontece com esse indivíduo que se vê entremeado por duas potências (vida/morte)? O que ainda resta de Eros nesse corpo que é conduzido para a morte? Um paradoxo. É a morte de um sujeito, mas o nascimento de uma beatitude. O indivíduo alcança o ápice de uma hecceidade quando desligado de tudo que o submete, sujeitos e objetos, ele é uma singularidade em todo universo. Esse sujeito se desfaz em detrimento da mais pura potência. São Paulo, a sua maneira, tentou dizer da morte de um sujeito, mas se equivocou ao colocar em seu lugar outro sujeito identitário de pretensões universais. Nas palavras Aos romanos, “já não vivo eu, mas Cristo vive em mim”, ele não faz mais do que substituir uma figura pela outra, uma identidade psicológica por uma subjetividade teológica. Muito pouco provável que o sujeito se desfaça em Cristo, pois o eu identitário apenas passa a somar com outro sujeito que se unifica subjetivamente no sujeito psicológico Paulo. Ou seja, é impossível que o Cristo não seja a representação em perspectiva do “eu” que pensa estar morto. É a natureza mesma de São Paulo, subsumida nos ideais do cristianismo que se fortalece. Ele tem uma meta, um alvo a ser perseguido até a morte, expandir o cristianismo ao limites do mundo. Uma beatitude (beata) de outra ordem que não entra em hecceidade. 

  São Paulo está mais próximo da paranóia. Ao contrário, do Homo tantum[1] de Deleuze e o Homo natura[2] de Deleuze/Guattari é o mesmo esquizo, ele se constitui num processo que não pode ser “tomado por uma meta, um fim, nem confundido com sua própria continuação ao infinito”[3]. Nos dois casos, “processo e continuação ao infinito”, dá no mesmo lugar, a paralisação. Deleuze/Guattari seguem pela dispersão do sujeito, não se trata de uma substituição onde um sujeito se subsumi no outro: natureza pecaminosa escondida na divindade de um deus. A dispersão do sujeito está mais próxima de um misticismo ateu, como diz Deleuze, “a vida de um indivíduo é lançada no mais puro acontecimento, liberado dos acidentes da vida interior e exterior, isto é, da subjetividade e da objetividade do que acontece”. Uma vida individual que se desfaz em singularidades moleculares, moventes ou nômades. Nesse momento, se um eu ainda persiste, só pode ser de uma espécie de “eu rachado”.

Fotografia de Flora Borsi

  Se as singularidades presidem a gênese dos indivíduos e das pessoas, conforme Deleuze[4], por outro lado são elas mesmas que dissipam os sujeitos. “(...) elas se repartem em um ‘potencial’ que não comporta por si mesmo nem Ego (Moi) individual, nem Eu (Je) pessoal, mas que os produz atualizando-se, efetuando-se, as figuras desta atualização não se parecendo em nada ao potencial efetuado”[5]. O Eu passa a ser apenas uma síntese de unificação das singularidades, nesse caso, uma singularização é diferente de uma subjetivação. A unificação das singularidades numa síntese não constitui um Eu subjetivo, mas apenas uma contração singular de multiplicidades. Isso é o que resta do Homo tantum que, mergulhado no mar de ondas de partículas que disputam a vida e a morte. A vida do indivíduo se entrega em proveito da vida singular de um Eu que não tem mais nome, mas também, é quando ele não se confunde com nenhum outro homem. Perguntar-se-á nesse instante, onde estará o sujeito? Não é o caso de sua inexistência, o sujeito fugiu, escapou, pegou uma linha de fuga, entrou em devir e evadiu-se de si mesmo. Não é a morte, mas o estado de se estar muito próximo a ela, porque a morte é tão vizinha da vida que nos faz pensar na vida como o lugar de todas as mortes. Ou que a dualidade vivo/morto seja apenas uma convenção da língua 

É enquanto impessoal que ela exprime, qualifica, exemplifica todo acontecimento do qual se torna como que o paradigma, por conta, justamente, desse desligamento impessoal, do sentido expresso. O ‘impossível eu morro’ desloca-se para um ‘ele’, e o on[6] são as denotações de uma singularidade que valoriza toda a vida – uma vida -, pré-individual, pré-subjetiva[7]. 

    O On é um sujeito indefinido, é o sujeito convertido “em índice da mais alta potência de vida”[8]. Na iminência da morte o pavor de morrer é substituído pela mais pura e serena beatitude, ela desvia a angústia e o pavor de morrer para as potências do acontecimento e transforma o que havia de rígido no indivíduo em planos de passagens singulares, de indefinidos, o “on”, o “ele”, o “um” tudo que se opõem às certezas das determinações do verdadeiro e do falso. Todo sentido do indeterminado é trazer consigo o acontecimento que libera os limites em que um indivíduo se encontra em seu eu. Segundo Deleuze, o eu se abre à superfície e libera as singularidades acósmicas[9], impessoais e pré-individuais que ele aprisionava[10]. O eu fica tomado pela energia neutra “pré-individual e impessoal, mas não qualifica um estado de uma energia que viria juntar-se a um sem fundo, remete, ao contrário, às singularidades liberadas do eu pelo ferimento narcísico”[11]. Nesse momento, a individualidade do eu se confunde com os fantasmas que se produzem no momento do eu dissolvido. 

   Assim como nas paranóias delirantes em que o eu se confunde com as passagens fortuitas que surgem nas cenas em que passam as transformações gramaticais (Schreber) ou do sadismo que marcam as disjunções intensivas do sujeito (eu) em multiplicidades de eus fantasmáticos que se misturam aos próprios fantasmas de grupo. Pois, mesmo a língua estruturada em significantes entra para o lado do estado de coisas ao qual sobrevém e lança a língua no elemento do verbo no infinitivo. “O fantasma é inseparável do verbo infinitivo e dá testemunho assim do acontecimento puro”[12]. Deleuze chama atenção para a qualidade do verbo infinitivo que não se reduz à sua relação gramatical (tempo, pessoa voz passiva, etc.). Não é esse o caso, trata-se do “infinitivo neutro para o puro acontecimento (...) questões ontológicas que correspondem com a linguagem”[13]. O tempo que entra em jogo é Aion que vai representar o tempo de todos os tempos e que vai engendrar todas as vozes. Por tanto, volta-se aqui à questão crucial do pensamento de Deleuze, é o Ser que aparece no efeito das disjunções sem fim, e que faz com que o sujeito seja esse andarilho que passeia por n-sexos, civilizações e todos os nomes da história.



[1]DELEUZE, G. L’immanence: une vie..., Philosophie nº 47, 1995, p. 5. 
[2]DELEUZE, G./GUATTARI, F. L’Anti-Oedipe. Paris: Les Éditions de Minuit, 1972, p. 11 (Tr. Luiz B. Orlandi, p. 15).
[3] DELEUZE, G./GUATTARI, F. L’Anti-Oedipe. Paris: Les Éditions de Minuit, 1972, p. 11 (Tr. Luiz B. Orlandi, p. 15).
[4] DELEUZE, G. Logique du sens. Paris: Les Éditios de Minuit, 1969, p. 124 (Tr. Luiz Roberto Salinas Fortes, p. 105).
[5] DELEUZE, G. Logique du sens. Paris: Les Éditios de Minuit, 1969, p. 124 (Tr. Luiz Roberto Salinas Fortes, p. 105).
[6] Pronome de indeterminação do sujeito, em francês, equivale a ‘se’ ou ‘a gente’ em português (N. do T.).
[7] SCHÉRER, René. Homo Tantum, o impessoal: uma política. In. Gilles Deleuze: uma vida filosófica. (Org.) Éric Alliez. São Paulo: Editora, 34, 2000, p. 23.
[8] Id.
[9] Acósmico, que não está submetido às regras do cosmos, do mundo e do eu, pertence ainda ao caos.
[10] DELEUZE, G. Logique du sens. Paris: Les Éditions de Minuit, 1969, p. 249 (Tr. Luiz Roberto Salinas Fortes, p. 220).
[11] DELEUZE, G. Logique du sens. Paris: Les Éditions de Minuit, 1969, p. 249 (Tr. Luiz Roberto Salinas Fortes, p. 220).
[12] DELEUZE, G. Logique du sens. Paris: Les Éditions de Minuit, 1969, p. 250 (Tr. Luiz Roberto Salinas Fortes, p. 221).
[13] DELEUZE, G. Logique du sens. Paris: Les Éditions de Minuit, 1969, p. 250 (Tr. Luiz Roberto Salinas Fortes, p. 221).


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