Amor-fati em Nietzsche: uma relação de apreço ao destino

por Higor Gusmão


Nietzsche, de modo geral, irá se agenciar com propostas filosóficas clássicas ao longo do tempo com o propósito de encontrar nelas suas molas propulsoras capazes de impeli-lo a uma filosofia que se proponha “para além do bem e do mal”. Mergulhando na esquizofrenia propriamente filosófica, o pensador alemão mostra-se profundamente atraído com relação ao pré-socratismo, uma vez que “Nietzsche”, segundo Deleuze, “se interessa pouco sobre o que se passa depois de Platão, estimando que seja necessariamente a sequencia de uma longa decadência” [1].

Todavia, é no postulado estoico acerca do destino que Nietzsche parece ter se debruçado a fim de desenvolver um dos seus mais belos conceitos, o “Amor-fati”, pouco explorado no autor em comparação as suas celebres formulações acerca do “eterno retorno”, do “ressentimento” e da “má consciência”; porém, eis a proposta nietzschiana de maior júbilo para a superação do homem – sim, meus amigos, “o homem é algo que deve ser superado” [2].

“Minha fórmula para a grandeza no homem é amor fati: não querer ter nada de diferente, nem para frente, nem para trás, por toda a eternidade... Não apenas suportar aquilo que é necessário, muito menos dissimulá-lo – todo o idealismo é falsidade diante daquilo que é necessário –, mas sim amá-lo... [3]

Amar a vida mesmo com todas as dores e pluralidade de sentido que ela traz em seu bojo constitui uma característica dos fortes, segundo Nietzsche, é o “dizem sim!” dionisíaco em oposição a constante rejeição promovida pelo cristianismo. Desde a cisão operada por Platão, essa concepção dicotômica totalmente errônea entre a “alma” e o “corpo”, o homem ocidental acostumou-se receber o acontecimento, sempre inédito, com a ficção chamada de “ideal” – “a ponte que levou à ‘cruz’” [4], logo a vida tornou-se algo que deva ser justificado e avaliado por meio do chicote silogístico da moral – e há muitas eras nossa civilização espia a vida através do “grande e único olho ciclópico de Sócrates” [5].


Arte de Alexandra Levasseur

Ao perscrutar cuidadosamente a trajetória filosófica do Ocidente, presa à rede da cultura alexandrina, Nietzsche depara-se com a expressão mais elevada do niilismo – marca registrada do que se chamou até então civilização e cultura – segundo os moldes da orientação platônica, e, prontamente, sai em defesa deste mundo:

“Desejo aprender cada vez mais a ver o belo na necessidade das coisas: é assim que serei sempre daqueles que tornam as coisas belas. Amor-fati (amor ao destino): seja assim, de agora em diante, o meu amor. Não pretendo fazer guerra ao que é feio. Não pretendo acusar, nem mesmo os acusadores. Desviarei o meu olhar, será essa, de agora em diante, a minha única negação! E, em uma palavra, portanto: não quero, a partir de hoje, ser outra coisa senão uma pessoa que diz Sim! [6].”

Pois “Dizer sim!” ao destino como ele a nós se apresenta e não nos perturbarmos com o que não está em nosso poder evitar, a saber, o fluxo inestancável de causalidades à qual, necessariamente, toda vida está acoplada é, muito além de uma reles obrigação da vida mortal, a própria condição de “eudaimonia”, palavra de origem grega que, grosso modo, pode ser traduzida por estado de bem estar, felicidade, alegria.

Com efeito, a palavra destino carrega em si mesma um leque bastante aberto de significações podendo ressoar de modo negativo ou positivo, dependendo da interpretação que dela se toma. Para o senso comum, o destino nada mais é do que um despretensioso quinhão, sina, sorte etc.; aquilo que a todo o momento deve ser recebido com o tão de pesar, posto que seja algo que escape aos domínios da moralidade humana. Em Nietzsche, diferentemente, a palavra vem repleta de um sentido positivo, o destino apresenta-se como aquilo que deve ser querido e amado acima de tudo, o próprio objeto do “Amor-fati”; de tal maneira nos estoicos, já que, para o pensamento estoico, “queira o homem ou não, todas as coisas acontecem necessariamente como elas acontecem” [7], e se o destino é uma necessidade da vida à qual os homens não se podem subtrair, não se deve odiá-lo e, sim, aprender a respeitá-lo.

Um belo exemplo desse amor nós podemos encontrar nos escritos do imperador Marco Aurélio, legítimo representante do pensamento estoico e um amante incondicional do destino que, ao se levantar, logo tratava de dizer para si:

“Ó mundo, tudo o que convém à tua perfeição, convém a mim! Nada me é prematuro ou tardio do que para ti é necessário. Tudo o que me trazem as tuas estações, é para mim fruto, ó Natureza! Tudo vem de ti. Tudo em ti reside. A ti tudo torna[8].”

Em outras palavras, aja sempre querendo o que acontece e como acontece. A vida e a morte, a saúde e a doença, o prazer e o sofrimento, a força e a fraqueza, quaisquer uns destes eventos naturais não dependem de nós, pelo contrário, nos são indiferentes. Tome-os como necessários, como nos orienta o filósofo Sêneca:

“Tu ficas indignado e te queixas! Não compreendes que todo o mal provém não do que te acontece, mas sim de tua indignação e de tuas reclamações? Do meu ponto de vista, não existe miséria para um homem a não ser a de achar que algo que faz parte da natureza das coisas não está correto. (...) Minha saúde não é boa; faz parte do meu destino. (...) Minhas rendas estão em baixa? Minha casa está rachando? Perdas, ferimentos, cansaços, inquietudes me assolam? São coisas que acontecem. Indo além, elas devem acontecer, pois não são obras do acaso, estavam determinadas. [9]

Bem, como o mostra Deleuze, tanto para Nietzsche como para os estoicos, “não há causas e efeitos entre os corpos: todos os corpos são causas, causas uns com relação aos outros, uns para os outros. A unidade das causas entre si se chama Destino, na extensão do presente cósmico” [10]. Desse modo, amar o destino não se trata de aceita-lo simplesmente como um fado ou fatalidade, porém deseja-lo e compreendê-lo como uma série de encadeamentos particularmente naturais no qual nós, enquanto partes dessa Todo, nada podemos contra a sua prescrição.

Nietzsche espera muitas coisas novas dessa concepção de “Amor-fati”: um novo modo de ver o mundo e o homem, uma nova organização da filosofia, uma determinação dos valores do futuro. Enquanto todos discutiam a respeito do modelo ideal de sociedade, modelo ideal de homem, Nietzsche voltou-se inteiramente para este mundo. Com afeição propôs uma reconciliação com a vida; preocupou-se não em saber o que era o homem, como deveria ser ou portar-se, porém, o seu questionamento tomou um sentido oposto, o que nós estamos fazendo do homem. E por meio de trovões e relâmpagos proferiu: “Eu sou aquele que traz a boa nova... E justamente por isso sou também um destino...” [11].


Referencias Bibliográficas:

HADOT, Pierre. O que é a filosofia antiga?. – São Paulo, SP: Edições Loyola, 2011.
DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido. – São Paulo, SP: Perspectiva, 2011.
MARCO AURÉLIO. Meditações. – São Paulo, SP: Martin Claret, 2012.
NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. – São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. – São Paulo, SP: Martin Claret, 2010.
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. – São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2011.
NIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo dos ídolos, ou, como se filosofa com o martelo. – Porto Alegre, RS: L&PM, 2015.
NIETZSCHE, Friedrich. Esse homo: de como a gente se torna o que a gente é. – Porto Alegre, RS: L&PM, 2012.
SÊNECA, Lúcio Anneo. Aprendendo a viver. – Porto Alegre, RS: L&PM, 2014.



[1] Lógica do sentido, Décima oitava série: das três imagens de filósofos, pág. 133.
[2] Assim falou Zaratustra, Prólogo, pág. 13.
[3] Ecce Homo, Por que eu sou tão inteligente, pág. 67-68.
[4] Crepúsculo dos ídolos, O que devo aos antigos, pág. 130.
[5] O nascimento da tragédia, § 14, pág. 84.
[6] A gaia ciência, Livro quarto, pág. 143.
[7] O que é a filosofia antiga?, pág. 192-193.
[8] Meditações, Livro quarto, XXIII, pág. 37.
[9] Aprendendo a viver, XCVI, pág. 97.
[10] Lógica do sentido, Segunda série de paradoxos: dos efeitos de superfície, pág. 5.
[11] Ecce homo, O crepúsculo dos ídolos, pág. 132.