ATRAVESSANDO AS “MALHAS” DA GRAMÁTICA

Quem jamais tenha vivenciado tal acontecimento, ter de olhar e ao mesmo tempo ir além do olhar, dificilmente compreenderá que o sentido do mundo não está dado. É preciso inventá-lo constantemente.

“Nenhum dispositivo cerebral permite distinguir a alucinação da percepção, o sonho da vigília, o imaginário do real, o subjetivo do objetivo. A importância da fantasia e do imaginário no ser humano é inimaginável; dado que as vias de entrada e de saída do sistema neurocerebral, que colocam o organismo em conexão com o mundo exterior, representam apenas 2% do conjunto, enquanto 98% se referem ao funcionamento interno, constitui-se um mundo psíquico relativamente independente, em que fermentam necessidades, sonhos, desejos, ideias, imagens, fantasias, e este mundo infiltra-se em nossa visão ou concepção do mundo exterior.” – EDGAR MORIN, Os sete saberes necessários para a educação do futuro.

Podemos notar que dentre todos os seres vivos, apenas o ser humano é capaz de estabelecer signos arbitrários, regido por convenções sócias. Em cada linguagem, constituída por um sistema de signos, possui uma estruturação própria em termos de repertório, de regras de combinação e de uso. Isso quer dizer que cada linguagem organiza a realidade de modo diferente de outra, pois estabelece repertório e regras diferentes.

Um típico exemplo desse fenômeno semiótico é a linguagem esquimó, que tem seis nomes diferentes para designar vários estados de neve, em português temos apenas a palavra neve. Não se encontra alternativas previstas na língua portuguesa.
Contudo, não se trata de uma língua ter maior ou menor número de palavras para “recortar”, e sim o fato da linguagem eleger determinadas partes da realidade para nomear. Para citar Nietzsche: “originalidade é dar nome a algo que ainda não possui um. (...) Mas é, em geral, somente o nome que nos faz ver as coisas”.

A existência desse regime arbitrário de signos leva à percepção da realidade de forma diferente. O esquimó percebe os diferentes estados da neve, enquanto nós percebemos somente se há neve ou não. Pode-se afirmar que a estruturação da linguagem influência a percepção da realidade e o nível de generalização do pensamento. O meio semiótico, via privilegiada de efetuação humana, modifica a sensibilidade, cria paisagens, formas, figuras. Um imaginário como capa do mundo.

Por aí se vê que a consciência está longe de ser instrumento apto a refletir sobre o mundo e, tampouco, poderia se constituir como meio de autoconhecimento do sujeito. Enquanto instrumento da comunicação, a consciência é parcial e seletiva, não está apta a revelar nada além do que é necessário para fins de auxílio e proteção. Enfim, todos estes atributos: “eu”, “ser”, “nada” são, no limite, conceitos que constituem as “malhas” da gramática, que nos enreda em uma “necessidade metafísica”.  

Para poderem viver, os homens têm necessidade de estipular permanência, unidade, identidade, substância etc. Essa cadeia de significações acaba criando o mais do mesmo em nós durante todo o processo da vida. Mas isso, cristalizado pela linguagem, torna-se um preconceito hipostasiado em uma “faculdade”, a razão (eis que, semelhante, fazem a noção da ideia de Platão e o sujeito transcendental kantiano).

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Entretanto, aquele que se põe em estado de poder captar os inefáveis balbucios do subconsciente, a ponto de poder dispensar a colaboração da razão discriminadora, abre caminhos à exploração para aquilo que não possui forma, deixando o tempo penetrar entre o sensório e o motor.

É preciso conceber a unidade do múltiplo, a multiplicidade do uno. Como no devir de Heráclito de Éfeso, onde toda efetividade é apenas vir a ser, nada permanece, não há formas ou fixações, apenas destruição e transformação.

Parte superior do formulárioParte inferior do formulárioA ideia de um mundo constituído de seres classificáveis por meio de substantivos comuns não provém da vivência autêntica, mas uma construção posterior alcançada por uma abstração operada pelo pensamento – clarões saídos do brandir das espadas dos elementos que se sobressaem na constante luta entre os contrários.

Ao passo que afirmamos o eterno suicida em potencial, latente em cada um de nós, de modo necessário, evitamos as armadilhas da gramática, adquirimos outra postura diante da linguagem. Deixando para trás duras paisagens de osso, destruindo a golpes de martelo os pilares que sustentam o pesado panteão da razão, vamos aprendendo a lidar com o eco de inumeráveis gritos de prazer e dor, sem refugiar-se diante dessa ciranda pastoral da metafísica.

- por Higor Gusmão