DO PARADOXO
por Higor
Gusmão
A estadia do homo sapiens sobre a Terra sempre exigiu dele a
acomodação entre forças que normalmente têm tudo para serem tencionadas.
Devemos, pois, reconhecer nosso enraizamento na physis e, ao mesmo tempo, nosso desenraizamento propriamente
humano. Estamos simultaneamente dentro e fora da natureza (todo fenômeno
natural obedece ao determinismo, todo fenômeno propriamente humano se defini
por oposição à natureza): sujeito/objeto, alma/corpo, finalidade/causalidade.
Tanto que a dualidade se reflete dos dois lados, em cada um dos dois termos. De
um lado, qualidades físicas, corpos dotados de ações e paixões, corpos que trazem
nos velhos muros de si as marcas da eterna luta entre os opostos; ao passo que,
do outro lado, resultam os acordes impassíveis incorporais – puro efeito de superfície,
que subsistem ou insistem no presente fazendo-o ressoar ao infinito em passado
e futuro.
Dessa maneira, o homem prossegue sua busca por sanar suas pequenas
palpitações narcísicas, experimentando em sua cabeça metafísica certa
onipotência maníaca. A priori, estivemos a meio caminho entre a natureza e
deus; a posteriori éramos filhos do próprio deus, feitos a sua imagem e
semelhança.
Ora, o que esperar de um animal que sempre se achou a coroação
por trás na natureza? O que esperar
de um animal que expia sua existência através de todo tipo de sofrimento e pela
morte? Heráclito considera
até mesmo que o homem, em geral, é um ser irracional, o que não contradiz o
fato de que a lei e a razão soberana se realizem em todo o seu ser. Ele nem
sequer ocupa uma posição privilegiada na natureza, cuja manifestação suprema é
o fogo, sobre a forma de um astro, por exemplo, mas não o homem limitado.
Todavia, o ser humano é complexo e traz em si, de modo
bipolarizado, caracteres antagonistas: sapiens/demens (sábio e louco), faber/ludens
(trabalhador e lúdico). O homem da racionalidade é também o da afetividade, do
mito e do delírio. O homem do trabalho é também o homem do jogo. Eis que
resulta daí uma incerteza
pessoal, na qual, segundo Deleuze, "não é uma dúvida exterior ao que se passa,
mas uma estrutura objetiva do próprio acontecimento, na medida em que sempre
vai aos dois sentidos ao mesmo tempo e que esquarteja o sujeito segundo esta
dupla direção".
Gilles Deleuze
Quem nunca se perguntou qual é o sentido da vida, o
sentido desta ou daquela vida, ou melhor, o sentido da própria vida? O senso
comum, enquanto um órgão e não mais uma direção, é a designação de que em todas
as coisas há apenas um sentido, uma direção. Um princípio estrutural partindo
de um suposto início em direção a um fim ou finalidade.
Entretanto, ser humano significa, em primeiro lugar,
estar dentro e fora do mundo, dentro e fora de si mesmo. Ser humano pressupõe a
perda da identidade a cada acontecimento exprimível. O sentido, como propunha os Estoicos,
é no mínimo duplo. E aqui o paradoxo aparece ao mesmo tempo como instrumento de
análise para a linguagem e como meio de síntese para os acontecimentos, uma vez
que afirma essa dupla direção do sentido: dentro e fora, expansão e contração,
envolvimento e desenvolvimento, devorar e ser devorado, introjetar e projetar. Na
medida em que nos desdobramos, novas dobras surgem em nós. Na medida em que nos
explicamos, novas implicações surgem em nós. O paradoxo é, em primeiro lugar, o
que destrói o bom senso com sentido único, mas, em seguida, o que destróis o
senso comum como designação de identidades fixas.